Isabela Alves/Agência Mural
Por: Isabela Alves
Notícia
Publicado em 07.02.2024 | 8:10 | Alterado em 27.02.2024 | 21:46
“Quando vou para a água, não estou sozinha”, diz Laís Guimarães, 27, velejadora, educadora ambiental e ativista social. Moradora do Jardim Gaivotas, no extremo sul de São Paulo, ela faz parte da Roda de Afeto, Arte e Cultura, iniciativa que busca capacitar mulheres, em sua maioria negras e periféricas, a aprender a usar o barco a vela e desbravar as águas da Represa Billings.
“É para tentar lutar como as minhas ancestrais fizeram”, conta ela. “Ocupar a represa ao lado de outras mulheres negras é um ato revolucionário: estamos acessando uma parada que não foi pensada para nós”, completa.
Mesmo que a represa seja um dos maiores e mais importantes reservatórios de São Paulo, muitos moradores da região não conhecem a história desse espaço e a potência em acessar essa região. Ao promover a vivência náutica, a ação estimula a prática esportiva e a identidade local.
Por meio do trabalho de base, Laís busca desmistificar as incertezas e levar cada vez mais pessoas de todas as idades para a água.
‘A gente é ribeirinho. Antigamente, muitas famílias se alimentavam com os peixes e hoje está se perdendo isso, porque os pescadores estão sendo retirados das margens’
Laís Guimarães, ativista social moradora do Jardim Gaivotas
Na terceira reportagem do especial “Periferias e Justiça Climática : alternativas ambientais para os nossos”, vamos conhecer a história da ativista que cresceu às margens da represa e busca democratizar esse espaço para outras pessoas das periferias.
Laís é apaixonada pelas águas desde menina. Quando tinha 7 anos, conheceu a Casinha, espaço que abriga diversos coletivos do Grajaú. Atualmente, além da roda de afeto, também ocupam o espaço o Imargem, Navegando nas Artes e O que cabe no meu prato?.
Nesse local, ela conheceu o barco a vela e começou a participar de diversas atividades. Em uma delas, de virar e desvirar o barco da represa, seu tio a viu dentro da água. “Ela quase morreu”, alertou o tio aos pais da menina.
“Se você pega o vento muito forte e não tiver muita habilidade, o barco vira. Então você tem que aprender a técnica”, explica Laís.
Depois desse dia, os pais dela a proibiram de voltar a navegar. Com o desligamento de uma de suas maiores paixões, ela seguiu sentindo muita falta de estar na água. Ao chegar na vida adulta e passando por diversos trabalhos, sentia que ali não era o seu lugar.
Em 2018, passou por um processo de depressão profunda e conheceu a terapia ocupacional. Depois de muitas consultas, a terapeuta a tirou do consultório e a levou para uma roda com cerca de 30 mulheres no CEU Navegantes, no bairro do Cantinho do Céu. A Roda de Afeto teve início naquele ano, em 8 de março.
Após três anos de tratamento, Laís compreendeu que o que faltava era navegar. A terapeuta a presenteou com seu primeiro barco com a ideia de que começasse as atividades com as mulheres. A embarcação veio batizada com o nome “Vitória” e, em paralelo, Laís também começou a trabalhar com essas mulheres na área da saúde.
“Não é ruim estar em um trabalho de domingo a domingo, que é a situação da maioria na quebrada, mas a gente não tem qualidade de vida”, avalia Laís sobre a atuação da Roda de Afeto, Arte e Cultura.
“As mulheres que estão na roda vieram do Nordeste, se casaram muito cedo e não tiveram muitas oportunidades. Elas vivem processos cheios e atravessamentos. É uma honra estar com elas”, reflete.
Com a chegada da pandemia de Covid-19, Laís, que também é pertencente a Rede do Fundão do Graja, uniu forças para a doação de cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade social. Por semana, eram doadas cerca de mil cestas em média.
A luta de Laís foi registrada no curta-metragem “A Represa É o Meu Quintal”, que estreou na 25° Mostra de Cinema de Tiradentes. Além de abordar o cenário pós-pandêmico nas periferias, o documentário falou sobre o enfrentamento às mudanças climáticas e o racismo ambiental.
Para ir a exibição, foi feita uma vaquinha online para bancar as despesas da ativista junto a equipe, mas o evento acabou sendo cancelado com o retorno do vírus. Foram arrecadados R$ 120 mil e esse valor foi revertido em diversas atividades para a roda de mulheres.
Pensando em formar mais mulheres velejadoras, em especial as negras e periféricas, a ativista promoveu a primeira imersão da Vitória na Água no dia 30 de setembro. A iniciativa reuniu mais de 30 mulheres de todo o país.
“O barco a vela traz adrenalina e você sente que é protagonista da sua história. Quanto mais momentos assim elas tiverem, mais autonomia vão criar”, conta Gracielly Guedes, 27, produtora cultural e artística, e uma das idealizadoras do evento.
A represa Billings é a maior em área urbana na América Latina. Foi construída pelo engenheiro estadunidense Asa White Kenney Billings e teve as obras concluídas em 1925. Para isso, parte da Mata Atlântica foi desmatada.
Essas interferências na natureza moldaram a maneira que ela é enxergada até os dias atuais e por isso ocupar a represa é um ato de resistência, afirma as organizadoras da Roda, já que ela havia sido pensada apenas para gerar energia para São Paulo, São Bernardo do Campo e o Grande ABC.
Gracielly e Laís também chamam atenção pelo fato de que a represa Billings não é acessada pela população, por estar em um local marginalizado da cidade de São Paulo.
A represa Guarapiranga, por exemplo, que também está na zona sul, é a que concentra mais clubes e recebe mais investimentos, porque, historicamente, foi ocupada desde o início por pessoas da elite paulistana.
‘São Paulo foi construída na base de onde a galera escolheu ocupar, então a nossa cidade é vendida há muito tempo’
“Todos os clubes que são muito conceituados, as pessoas negras estão lá como trabalhadores e não frequentadores. Foram inúmeras vezes que eu me senti sozinha nesses espaços”, ressalta. Para ela é preciso mudar um mundo onde “os barcos têm mais valores do que as pessoas.”
*A série “Periferias e Justiça Climática: alternativas ambientais para os nossos” foi produzida com apoio do ICFJ (International Center for Journalists).
Graduada em jornalismo pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM) e pós graduanda em Mídia, Informação e Cultura pelo Celacc/USP. Homenageada no 1° Prêmio Neusa Maria de Jornalismo. Correspondente do Grajaú desde 2021.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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07.02.2024Ao contrário do publicado inicialmente, Lais não é criadora da roda, mas uma das participantes. O projeto foi iniciado por Dani Ursogrande e Lia.
07.02.2024O nome "Vitória" não foi batizado por Laís, mas já era o nome dado pela terapeuta que a presenteou
07.02.2024O valor arrecadado foi de R$ 120mil e não R$ 400 mil como publicado inicialmente