Nesta quinta-feira, 25 de julho, é o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. A marca surgiu há 27 anos, quando houve a primeira reunião de mulheres negras dessas regiões, na República Dominicana. A ideia era organizar uma rede para enfrentar problemas causados pelo racismo e machismo no continente.
No Brasil, o 25 de julho também lembra a líder quilombola Benguela, que comandou um quilombo no século 18 no Mato Grosso por décadas na resistência contra a escravidão. O Dia Nacional de Tereza de Benguela virou lei nacional em 2014.
O dia marca a discussão sobre as reivindicações, a tentativa de superar estereótipos e discutir o cenário da mulher negra no Brasil, ainda marcado pela violência e pela desigualdade de renda.
Na contramão dessas estatísticas existem trajetórias valiosas. É o caso das mulheres negras das periferias entrevistadas nesta reportagem da Agência Mural. Elas vêm lutando por meio da literatura, do autocuidado e da pintura, para transformar as realidades onde vivem.
Confira:
Ordalina faz obras de artes em restos de barracos em Diadema
Em Itaquera, Valéria virou poeta enquanto era fiscal de ônibus
Da zona norte a Flip, a história da professora Joyce
ORDALINA RETRATA EM PEDAÇOS DE MADEIRA CENAS DAS PERIFERIAS EM DIADEMA
Após dar aulas de artes e de cabeleireiro para jovens em vulnerabilidade social por 50 anos, a educadora e pintora Ordalina Candido, 74, moradora do Jardim Inamar, em Diadema, quer direcionar oficinas gratuitas de pintura para mulheres.
A artista deseja atender mais mulheres negras das periferias da cidade da Grande São Paulo, principalmente da terceira idade e mães solos – que precisam criar os filhos sozinhas independentemente do estado civil.
“Elas sentem falta de conversar. A proposta é sorrir juntas, compartilhar sofrimentos, amenizar dores e pintar em materiais reaproveitáveis”, afirma. “Como diz uma frase, acho que é ditado, há jeito de sofrer sorrindo para fazer sorrir os que sofrem.”
A oficina de pintura para mulheres é realizada no ateliê de Ordalina, lugar que divide quintal com a própria casa. Parte do resultado são registros das favelas onde elas vivem, pintadas em pedaços de madeiras dos barracos onde algumas moravam e outras ainda moram.
“Mulheres pobres e negras ainda estão longe das artes, não estão acostumadas a ver quadros, imagina pintar uma tela e levar para decorar a casa”, descreve a artista.
No ateliê, as telas de Ordalina retratam comunidades de Diadema, entre elas, Pantanal e Morro dos Macacos. Também trazem rainhas negras, orixás, retratos de líderes como Dandara, Zumbi dos Palmares e Nelson Mandela.
Para Ordalina, a arte é direito de todos e foi a via para encontrar a ancestralidade, apagada até a adolescência. “Não sabia que existiam religiões de matriz africana e nem sambar. Durante o Carnaval, eu estava em retiros na escola”, lembra.
Nascida em Cambará, ela estudou no Colégio Imaculada Conceição, em Jacarezinho (PR), no sistema internato e particular. Conseguiu entrar pela exigência da mãe que era cozinheira no local. “Na escola eu era a única negra. As freiras passavam ferro quente no meu cabelo pra deixar liso igual das Meneghel, das Wolf. Onde queimou não cresceu mais cabelo”, descreve.
Quando veio para Diadema com a mãe, Maria Alves Candido, há 50 anos, Ordalina começou a pesquisar a cultura negra. “Não fomos só escravos, tivemos líderes também. Mas nossas periferias não sabem. Na minha próxima exposição quero abordar os diferentes protagonismos do nosso povo”, avisa.
Os quadros de Ordalina também podem ser encontrados em pizzarias e borracharias das periferias de Diadema, e já foram expostos em escolas e espaços culturais como o Teatro Clara Nunes, PUC-SP e em países como Noruega, Portugal, Austrália e Canadá.
Boa parte dos aprendizes frequentavam suas oficinas na ONG Rede Cultural Beija-Flor, no bairro Eldorado, onde ela deu aulas por 25 anos para grupos em vulnerabilidade social. Ela conta que alguns se formaram e lista que dali saíram professor de capoeira, de artes, diretor de escola, cabeleireira e jornalista.
A jornalista Isabelli Gonçalves passou pelas aulas de pintura da educadora e produziu o documentário Ordalina Candido: eu sou o povo, o qual dirigiu junto com Diaulas Ullysses.
Autodidata como pintora e cabeleireira, foi no colégio que, ainda adolescente, se destacou nas artes, o que serviu também como apoio para esse período. “Fiz trabalhos para algumas colegas em troca de um guaraná e um pãozinho com mortadela. Esse pão cheira até hoje no meu nariz”, recorda.
O Mapa da Violência de Gênero aponta que 64% das mulheres assassinadas no Brasil são negras (Dados de 2016 do Datasus – Sistema de Informações sobre Mortalidade e Sinan – Sistema de Informação de Agravos de Notificação)
O Mapa da Violência 2015 evidencia a redução em 9,8% dos homicídios direcionados à mulher branca, de 1.747 vítimas em 2003 para 1.576 em 2013. Já o mesmo crime direcionado às negras aumentou 54,2%, de 1.864 para 2.875 vítimas no mesmo período
A artista paranaense quis repassar seus conhecimentos sobre a pintura e a arte de fazer cabelos para pessoas com barreiras semelhantes a dela. Por 15 anos teve o Ordalina Black and White. “Mas senti o incômodo dos brancos com os crespos, não entendiam o porquê do nosso autocuidado.”
A profissional não deixou de atender essa clientela e, para afastar olhares julgadores, dividiu o empreendimento com um biombo. Mas sentia falta dos desenhos. Quando conseguiu se estabelecer, retomou as pinturas e construiu o próprio ateliê.
Mãe de quatro filhos, três mulheres (uma falecida) e um homem, avó e casada só no papel, Ordalina também enfrentou o machismo do marido em casa. “Ninguém me falou que precisaria enfrentar violências no casamento. Levei 12 anos pra conseguir jogar fora um revólver dele.”
Diante dessa situação, a artista viu a pintura como caminho para se libertar. “A arte educa, é por onde você consegue expor o seu eu que não aparece para os outros. Pode demorar, mas quando nós, mulheres negras, despertamos, nos libertamos das correntes da sociedade.”
VALÉRIA HORA VIROU POETA ENQUANTO TRABALHAVA COMO FISCAL DE ÔNIBUS
Transformar as dores em poesia. A escritora Valéria Hora, 62, era fiscal de ônibus do Terminal Rodoviário do Tietê, na zona norte da capital, e foi ali que começou a dar vazão a poesia.
Moradora da zona leste de São Paulo, ela escreveu os primeiros textos dentro da cabine “naquele minutinho que esperava o ônibus chegar para liberá-lo, começava a escrever”. Entre o vai e vem de tantas pessoas, com tantos destinos, nasceu o livro “Um Dia Talvez”.
A pernambucana, na década de 1990, construiu o apartamento do Conjunto Habitacional Vila Cosmopolita, localizada em Itaquera, na zona leste.
O apartamento é fruto do trabalho dela e de outros moradores. Na época, a prática do mutirão era comum entre a Prefeitura de São Paulo, a construtora e futuros moradores, estes com a mão de obra. Só assim era possível realizar o sonho da casa própria.
As mesmas mãos que seguraram blocos, movimentavam o cimento e ergueram paredes, também construíram registros em forma de poesia.
Admiradora da literatura, conta que desde a infância falava de fazer um livro. “Lembro que tinha gente que dava risada, perguntava se eu era louca, sempre respondia que não e que iria concretizar este sonho”, relembra da promessa e a realização em fevereiro deste ano.
O lançamento foi em Guaianases na sala Feminista da Biblioteca Municipal Cora Coralina.
A primeira pessoa que a incentivou a ida ao universo dos livros foi Maria Quaresma. “Era a minha vizinha em Recife, me prometeu aos seis anos que me daria um livro se aprendesse a ler”.
Na expectativa do presente, Valéria não deu paz em casa, morava com os sete irmãos e o pai. Foram dias até aprender todas as letras do alfabeto, juntá-las em palavras e finalmente conseguir uma leitura completa.
Correu no mesmo dia para casa de Maria Quaresma, esperou ela chegar do trabalho e contou do novo aprendizado, “Li ainda gaguejando o título do livro Alice através do espelho, (de Lewis Carroll) e depois tinha que contar a história para ela”, conta Valéria.
A mulher preta ou parda tem um rendimento menor que o homem negro, branco e mulher branca, recebendo a média salarial de R$1.516, de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais (SIS) divulgado pelo IBGE.
Em 1995 mais de 4,3 milhões das mulheres negras eram chefes de família no Brasil e em 2015 já ultrapassavam 15,8 milhões na mesma condição, segundo o Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça com dados do IBGE e PNAD.
Também tem poesias das saudades do pai Walfredo, que morreu em Recife em 1978. “Meu pai que criou oito filhos, ficou viúvo aos 40 anos e foi a inspiração para a minha vida”. Também tem homenagem para a mãe que pouco conheceu. “Minha mãe faleceu de parto, hoje tem gente que se espanta ao saber, mas era mais comum antigamente”, conta.
A mãe e outras mulheres a motivaram a caminhar, principalmente as que conheceu na Casa Helena CDCM (Centro de Defesa e Convivência das Mulher). “Nós precisamos andar e não ficar paradas, a vida é movimento”, lá recebeu forças e com elas se reafirmou escritora.
Para Valéria, invisibilizam as mulheres da periferia todo o tempo. “Vivemos dando murro em ponta de faca, somos como gente sem rosto. Encontro pessoas que me vêem todo dia e não me conhece”, afirma. “As pessoas das periferias são invisíveis, mas não insensíveis”.
DO JARDIM BRASIL A FLIP, JOYCE ESCREVE SOBRE TEMAS DA MULHER NEGRA
Para Joyce dos Santos Silva, 33, o Dia da Mulher Negra representa ‘o poder de ser negra, ser forte, resistir, lutar e conseguir’, e serve para refletir sobre os desafios. “Sendo mulher, negra e de periferia, sentimos na pele as dificuldades do dia a dia, porque nestas condições da sociedade elas dobram. E as conquistas tem que ser valorizadas”, define a autora do conto infantil “Rainha Tetê – A história de Tereza de Benguela”.
Escritora, pedagoga, e moradora do bairro Jardim Brasil, na zona norte de São Paulo, ela já teve três livros publicados. O primeiro em junho de 2016, “A princesa que roubava pentes”, teve uma tiragem inicial de 40 unidades e foi publicado em autoria com duas colegas de faculdade Priscila Pereira Novais e Joana Xavier Tavares.
Em 2017, lançuo “Rainha Tetê” e, neste ano, participou da obra “Antologias Palavreiras – Contos e poemas que merecem ser lidos 2019”.
A publicação foi lançada na Flip (Feira Literária Internacional de Paraty), pela mesma editora em que publicou o primeiro livro. Foram distribuídos mil exemplares gratuitamente e agora está disponível no site da editora.
“Vejo que o jugo dos seres ultrapassa a humanidade.
Segue sem freio, sem consciência e muito menos linha tênue
Pois o dedo julga, o pensamento retrata e mata
Mata-se vida por aqui, independente de qualidade
Pode ser meia dúzia de gente ou uma árvore, por acreditar que quem está à margem não tem nada a dizer
Agora, diante de tanta beleza dessa criatura, me torno pequena e imatura ao julgar que esse ser vivo não tem nada a dizer
Seduzida pelos seus encantos, tu agora guarda meu pranto e meu imenso querer
Mudar o mundo com as letrasTu serás mais uma ou serás a mesma arvorê?
Joyce contribuiu com o poema ‘Mais uma arvorê’. “Essa poesia conta um pouquinho da minha história como mulher de periferia que vive à margem, mas de uma forma simbólica, usando uma árvore. Também fala da questão de ser igual, mais uma ou fazer a diferença”, explica a escritora.
“É um grande sonho realizado, porque para mim escrever é ter voz, e ter voz na Flip é saber que vai muito além do seu continente e você pode alcançar outras culturas. São as nossas experiências que nos tornam fortes, e sem dúvida, as minhas estão me edificando com muita alegria”, finaliza.
Joyce conta que já sentiu ser preterida no trabalho apenas por conta da questão racial. “Quando trabalhava com moda apareceu uma viagem para o Rio Grande do Sul, estava há meses trabalhando, achando que seria a minha vez. Mandaram uma menina que não tinha nem um mês de empresa”, afirma.
“Quando questionei disseram que ela combinava com o local. Ela era loira de olhos claros. Eles viviam me pedindo para emagrecer, cortar, pintar, alisar meu cabelo, entre outras coisas, para parecer fazer parte daquele mundo”, completa.
Joyce é professora de educação infantil e já usou os próprios livros nas escolas onde lecionou. “Para o próximo semestre, estamos montando um projeto de literatura que incluirá meus livros como forma de ação sobre etnias, diante dos estudos dos documentos da BNCC (Base Nacional Curricular Comum)”.